Ao
sair da cidade de madrugada, Pedrinho pede para que todos sejam unidos
nesta caminhada. Se sentirem perigo, que todos enfrentem a situação como
um só. Enzo trouxe um facão, é o mais velho da turma com quatorze anos
de idade e não poderia sair desarmado, ele sempre foi mais calculista
com tudo o que fosse fazer, sempre pensava nas possibilidades. Bernardo
também trouxe um facão escondido de seu pai, era o mais novo da turma
com apenas oito anos porém, era o mais alto e mais forte deles. Ana
Clara não trazia nada, ninguém era louco o suficiente para tentar mexer
com ela com seus doze anos de idade, nunca havia perdido uma briga, seu
medo era um segredo guardado. Adrian só trouxe comida, água, e algumas
coisas para improvisar, era muito bom no improviso e Pedrinho trouxe sua
mochila, barraca, e sacos de dormir.
O
deserto a noite era muito frio, precisavam aproveitar a madrugada e
correr para atravessá-lo, pois o dia era insuportável de tão quente.
Depois de algumas horas em silêncio e, já a uma distância considerável
da cidade, Adrian se senta na areia.
– Pedrinho o Adrian sentou! – alerta Enzo.
– Está tudo bem Adrian?
– Está. – depois de uma pausa questiona - O que acontecerá quando nossos pais descobrirem que nós fugimos?
–
Já faz mais de três dias que aconteceu aquele negócio com o padre e
desde então nossos pais não conversam, não dizem nada, ficam com aquelas
caras espantadas e sem expressão. Nossa busca é pela cura deles. –
responde Pedro.
– Larga de ser fresco! Vamos logo, se for pra nos atrasar é melhor que ficar aqui, mocinha. – provoca Ana Clara.
Pedro volta, pega a mão de Adrian e puxa-o dizendo: - Pode vir tranquilo, passaremos isto juntos.
Mais
confiantes as crianças partem para a aventura, sem saber o que os
esperam no caminho. Bernardo passa ao lado de uma caveira dissecada pelo
sol e faz careta.
–
O deserto não tem trilhas, a areia cobre todo vestígio de rastros
durante o dia com o vento, temos que seguir sempre em frente, e não
podemos esquecer a direção que estamos indo, se não poderemos morrer
aqui. Logo veremos sinal da floresta. – alerta Enzo.
–
Aquele velho do mercadinho também disse que só é possível atravessar
este deserto a noite, então vamos deixar de conversa e andar mais
rápido. – ordena Ana Clara.
Ao longe as crianças notam uma pequena luz surgir em uma montanha de areia.
– O que é aquilo?! Parece que está vindo em nossa direção.
A luz se multiplica, pontos em fila.
– Estranho... – pondera Bernardo já segurando o cabo do facão.
As
crianças param, observam e notam que são pessoas, vestidas de branco
iluminadas pela Lua cheia, a imagem fica mais nítida a medida que se
aproximam, acompanhados do som de um mantra, ritmado por um bumbo.
– É uma procissão seus medrosos. – afirma Ana Clara tomando a frente.
– Espera Ana! Não sabemos do que se trata. – diz Enzo. Bernardo volta três passos com medo daquilo, o mantra fica mais audível:
“Reza
mais, reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma
que morreu sem confissão; Reza mais, reza mais, reza novena e trezena;
Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem cumprir pena”.
Ana
Clara nota o primeiro da fila carregando uma enorme cruz preta, e o
restante velas vermelhas, todos com o que parecia ser um enorme cone na
cabeça. Pareciam fantasmas. Um deles sai do grupo e vai em direção a Ana
Clara. Bernardo chega próximo com o facão em punho. O “fantasma” para e
diz:
“Mulher,
guarde seu medo e sua raiva, a noite é dos mortos. Guarde esta vela e
este Rosário Bento pra mim, não importa se ela apagar, na escuridão do
seu caminho, essa vela reacenderá e a guiará”.
Ana
Clara, tentou enxergar o brilho dos olhos escuros daquela mascara lisa e
grande, ao mesmo tempo que tentava decifrar aquilo que mais parecia ser
um alerta do que um enigma. O mesmo, volta para seu grupo, na procissão
rumo a Mistanásia.
Bernardo segura a mão de Ana Clara, olha nos olhos dela e balança a cabeça em sinal de apoio.
-
Vamos estar sempre juntos Ana Clara, guarde sua raiva e seu medo,
sabemos que deva ter motivos sérios para ser assim, mas não é problema
nosso. Estes são fantasmas, me lembro de minha avó dizer algo sobre eles
mas, pensava ser lenda apenas. – disse Enzo, e prosseguiu – Isto se
chama “Procissão das Almas”, eles ficam vagando em nosso mundo por terem
sido tão ruins quando vivos que a terra, foi capaz de rejeitá-los.
Então ficam a vagar deixando suas velas às pessoas que plantam o mal,
prometendo sempre voltar para buscar esta mesma vela.
- E se a pessoa não aceitar segurar a vela? – questiona Adrian.
-
A pessoa não consegue rejeitar e, se caso ela se arrependa do que fez
de coração, a vela vira uma bela Orquídea Lilás, caso contrário, se
transforma em uma parte do corpo humano. Quando a procissão volta para
pegar a vela, eles levam a alma do sujeito. – conclui Enzo.
- Eu não vou com eles. – afirma Ana.
- Eles não disseram que voltariam. Só lhe aconselharam. – abrandou Pedrinho.
- Vamos gente está próximo de amanhecer. No deserto o dia chega mais cedo. – alerta Adrian.
Ana
Clara fica mergulhada em pensamentos. Ainda tentando entender, por que
diabos resolveram escolher ela, e por que não poderia ser outro dos
meninos a carregar a maldita vela?
“Não bastasse aquele monstro do quarto ficar me atormentando quase
todas as noites, me fazendo perder noites de sono. Agora isto. O que fiz
para merecer essas assombrações?”
Em
meio à esses pensamentos, o rosto de seu padrasto vem a sua memória,
junto com as visitas indesejadas que ele fazia em seu quarto.